O Brasil revisou sua posição sobre a liberalização do comércio internacional de alimentos e o papel do Estado na promoção da segurança alimentar, na Organização das Nações Unidas (ONU). A mudança em relação à posição do governo anterior foi apresentada na Cúpula dos Sistemas Alimentares das Nações Unidas, encontro que reuniu mais de 20 chefes de Estado e de governo e mais de 100 delegações ministeriais em Roma, na Itália. O governo brasileiro argumenta que é preciso associar as “negociações comerciais internacionais à promoção da segurança alimentar e nutricional”.
A nova proposta reconhece o papel do comércio internacional “ao permitir o abastecimento e o equilíbrio no fornecimento de alimentos entre os países”. Porém, acrescenta que a condução das negociações comerciais entre nações deve “proteger e promover os interesses dos agricultores familiares e a diversidade dos sistemas alimentares brasileiros”. Com a mudança, o Brasil impõe condições para abertura comercial no setor de alimentos.
“A abertura do comércio deve ser acompanhada de políticas de apoio e incentivo à agricultura familiar, garantindo sua participação justa e equitativa nos mercados nacionais e internacionais”, afirma o documento.
O documento revisado substitui o apresentado na primeira cúpula, realizada em setembro de 2021, retirando o trecho que defendia a liberalização do mercado mundial como essencial para alcançar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) de erradicação da pobreza extrema e de acabar com a fome até o ano de 2030.
A nova posição do governo brasileiro foi entregue ao secretário-geral da ONU, António Guterres, substituindo o documento apresentado em 2021 pela então ministra da Agricultura do governo Jair Bolsonaro, Tereza Cristina.
No documento do governo Bolsonaro, mencionava-se que a “liberalização do mercado, incluindo o comércio internacional aberto” e o “livre comércio agrícola” seriam essenciais para alcançar a erradicação da pobreza extrema e acabar com a fome. A proposta assinada por Tereza Cristina apontava como prioridade a promoção da liberalização do comércio internacional.
Papel do governo
O novo documento representa a visão do governo para a construção de sistemas alimentares mais saudáveis, sustentáveis e inclusivos, argumentou a secretária-executiva do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Fernanda Machiaveli, que lidera delegação brasileira na cúpula da ONU.
“A construção desses sistemas passa pelo fortalecimento das políticas para agricultura familiar e sua conexão com as políticas de segurança alimentar”, afirmou.
A revisão do documento apresentado à ONU foi realizada pela Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), composta por representantes de 24 ministérios. “Os objetivos e as ações prioritárias foram reelaboradas e foram introduzidos novos elementos, como o fortalecimento da governança das políticas nacionais de segurança alimentar e nutricional”, explicou a secretária-executiva do MDA.
O fortalecimento da governança nacional foi incluído no documento como a primeira das estratégias nacionais, tema que não estava presente da proposta do governo anterior. O texto atribui o dever de o Estado brasileiro garantir o direito humano à alimentação adequada, “inclusive por meio do redesenho das estruturas estatais, da adequação do arcabouço jurídico e legislativo e da implementação de políticas públicas”.
Segundo o governo brasileiro, o aumento da fome no mundo e a recente alta nos preços internacionais dos alimentos e insumos ressaltam “a necessidade de garantir espaços de atuação governamental para a implementação de políticas públicas voltadas a melhorar a segurança alimentar”.
Crises
A mudança na posição brasileira em relação ao comércio internacional é bem-vinda na avaliação do consultor para Sistemas Alimentares da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) Arnoldo de Campos. Membro do Instituto Fome Zero, o especialista defende que a liberalização do mercado não é capaz de enfrentar as três principais crises relacionadas ao tema: a crise de fome, a crise de doenças crônicas, causada pela má alimentação, e a crise climática.
“O mercado não responde a nenhuma dessas crises. O mercado não consegue acabar com a fome. Ele, inclusive, é proativo na promoção de alimentos de má qualidade nutricional. Então, é fundamental ter políticas públicas ativas para que os sistemas alimentares possam ser mais resistentes e enfrentar desafios como obesidade, doenças crônicas e a crise climática”, destacou.
Arnoldo lembrou da situação dos países que dependem dos grãos da Ucrânia. Recentemente, a Rússia bloqueou o comércio de alimentos ucranianos. “Os países todos hoje estão caminhando na direção de ter comércio, de aperfeiçoar o comércio, que é importante, mas também ter políticas públicas. Não é possível deixar tudo na mão do mercado. Muito menos em um tema como esse”, adverte.
A Cúpula de Sistemas Alimentares das Nações Unidas se reuniu pela primeira vez em 2021 com objetivo de encontrar formas de produzir alimentos saudáveis, combater a fome e reduzir o impacto ambiental em um contexto de agravamento da crise social e econômica provocada pela pandemia da covid-19.
Na reunião, o secretário-geral da ONU, António Guterres, alertou que os sistemas alimentares globais estão “quebrados” e que em um mundo de abundância “é escandaloso que as pessoas continuem a sofrer e morrer de fome”.
Segundo estimativas da ONU, mais de 780 milhões de pessoas passam fome no mundo, quase um terço dos alimentos são perdidos ou desperdiçados e quase três bilhões de pessoas não podem pagar por dietas saudáveis.