Em 15 de janeiro de 2009, poucos minutos depois de decolar do aeroporto de Nova York, o piloto do voo 1549 percebeu que um dos motores não lhe permitiria chegar em condições normais a seu destino e nem voltar para o aeroporto. Tomou então uma das decisões mais transcendentais de sua vida: aterrissar nas frias águas do rio Hudson e conseguir assim salvar a vida de todos os passageiros e da tripulação. Se o piloto desse avião tivesse sido um computador, muito provavelmente todos estariam mortos. As 155 pessoas se salvaram porque Chesley Sullenberger II, o herói do Hudson, tinha um cérebro humano e, particularmente, porque seu lobo frontal estava intacto.
Baseados em nossa experiência, intuição, aprendizagem e emoção, nós, seres humanos, integramos a informação num contexto que muda permanentemente de maneira imediata e automática. O córtex frontal desempenha um papel-chave na tomada de decisões e na integração do contexto, ainda que, evidentemente, outras áreas cerebrais também estejam envolvidas. Se há alguma parte do cérebro que tem uma relação maior com nossa identidade, (com aquilo que nos distingue das demais criaturas viventes e, ao mesmo tempo, faz que cada pessoa seja diferente da outra), essa área é o lobo frontal. Se outras áreas específicas do cérebro sofrem algum dano, por exemplo, dificuldade motora em algum membro, dificuldade de percepção ou perda de aspectos da linguagem ou de algumas memórias, a essência do indivíduo permanece intacta. Quando ocorre algum dano nos lobos frontais, é a personalidade que muda.
O lobo frontal ocupa toda a região anterior do crânio. Essa porção cerebral, que acaba de amadurecer entre a segunda e a terceira décadas de vida, é decisiva para a recuperação de informações armazenadas em outras regiões do cérebro e para facilitar, dessa maneira, diversas funções intelectuais. E assim que lidamos simultaneamente com muitas lembranças e as combinamos de distintas e infinitas formas. Afinal de contas, o que é a imaginação senão a capacidade de articular imagens velhas para compor sequências novas? E o que é o planejamento senão a capacidade de criar virtualmente, ou seja, no mesmo cérebro, um futuro possível que nunca existiu no passado? Como se consegue uma solução criativa para um problema inesperado se não por meio da capacidade de se adaptar à situação imprevista de uma ordem nova dos elementos conhecidos? Tudo isso foi posto em funcionamento pelo piloto do avião quando foi na direção do rio, deixando pasmos os controladores da torre de controle ao comunicar-lhes sua decisão. “Vamos para o Hudson”, disse ele.
O lobo frontal desempenha um papel central no estabelecimento de objetivos e na criação de planos de ação necessários para a obtenção dessas metas. Esses processos que coordenam capacidades cognitivas, emoções e a regulação de respostas comportamentais diante de diferentes demandas ambientais se denominam “funções executivas”. Essas habilidades podem se dividir em duas: por um lado, as chamadas metacognitivas, que incluem a solução de problemas, o pensamento abstrato, a memória de trabalho, o planejamento, a estratégia e a implementação de ações; por outro lado, as emocionais ou motivacionais, responsáveis pela coordenação da cognição e emoção, ou seja, encontrar estratégias socialmente aceitáveis para os impulsos. O que isso quer dizer? Trata-se de questões, como as que vimos páginas atrás, nas quais está implicada, por exemplo, a inibição dos instintos básicos (muitas vezes nos vemos tentados a reagir violentamente e não o fazemos, ou ficamos com algo que desejamos e não nos pertence, ou agimos sem condicionamentos ante o desejo).
É exatamente isso que falha em muitos pacientes que têm afetado o lobo frontal. Aprendemos muito sobre o funcionamento normal dessa região cerebral ao estudar pacientes com esse tipo de problema.
Um caso que abriu muitíssimas portas para essas pesquisas foi o de um jovem americano chamado Phineas Gage, chefe de equipe de uma empresa de transporte ferroviário, que sofreu um acidente em 1848. Era um trabalhador eficiente, confiável, capaz, equilibrado, até que um dia uma barra de ferro atravessou seu lobo frontal. Sobreviveu por milagre, mas depois de recuperado sua personalidade mudou radical e permanentemente. Tornou-se uma pessoa impulsiva, desinibida, irreverente, que escolhia sempre opções arriscadas e irresponsáveis. Suas decisões já não eram vantajosas para ele nem para sua família: decidia desfavoravelmente ao deixar de avaliar as consequências negativas de suas ações. Como Phineas Gage, os pacientes com lesão frontal sabem discernir o que é bom do que é mau, mas decidem de modo desvantajoso. Esses pacientes têm uma miopia do futuro em sua tomada de decisão, privilegiam a recompensa imediata, ainda que isso tenha repercussões negativas a médio e longo prazos.
É curioso que não haja muita diferença entre o tamanho do lobo frontal dos macacos e dos humanos. Mas há, como vimos, em suas habilidades frontais. Os estudos neurocientíficos postulam que isso poderia se dever a uma interconexão mais rica nos humanos. De igual modo, a análise arqueológica não descobriu uma grande evidência das funções executivas metacognitivas no homem pré-histórico. Elas representam uma aquisição recente na evolução. A linguagem, principalmente, e outros instrumentos culturais (a matemática, o desenho e a tecnologia) contribuíram para o desenvolvimento de habilidades metacognitivas.
Todas essas qualidades dotaram os seres humanos dos recursos suficientes para resolver muitos problemas ligados a sua vida cotidiana, seu desenvolvimento e expectativa de vida, bem como para enfrentar os problemas sociais mais importantes. A fome, as guerras e as mortes evitáveis deveriam ser história do passado, se as funções executivas metacognitivas (racionais) tivessem sido utilizadas efetivamente na solução desses problemas. Mas, como se sabe, nem o homem, nem as guerras, nem as mortes evitáveis, lamentavelmente, desapareceram da face da Terra. Uma resposta possível a essas situações é que as questões sociais, em geral, têm também um conteúdo emocional.
Muitas teorias científicas postulam que as decisões derivam de uma avaliação de várias alternativas dos possíveis resultados com uma análise racional, controlada e consciente. No entanto grande parte das decisões que tomamos são guiadas por nossos estados afetivos e por processos implícitos que muitas vezes não chegam à consciência. Evolutivamente, o cérebro desenvolveu um processo de tomada de decisões humanas no qual não só estão envolvidas áreas ligadas ao lógico e computacional, como também ao emocional. Quando há envolvimento de outras pessoas, não é fácil manter a neutralidade do ponto de vista emocional, já que isso implica poder, submissão, benefícios pessoais etc. A ênfase no controle do comportamento, a antecipação às consequências da conduta e outras habilidades semelhantes contribuíram para a falsa ideia de que nos regemos só pela racionalidade. A história humana (por exemplo, pensemos em grandes e trágicos acontecimentos do século XX) contradiz claramente essa ideia.
Podemos emendar esses conceitos que expusemos apelando para um recurso poético que permite inferir o todo pela parte: diríamos então que o lobo frontal age como sinédoque de nós mesmos. Somos aqueles que, com ímpeto social, podemos salvar vidas tomando decisões acertadas e aqueles que nos tornamos improcedentes com certas injustiças de longo alcance: a desnutrição e a subnutrição, a indigência, o analfabetismo.
Digamos então que a miopia do futuro não é só uma maneira de definir um fenômeno neurológico. Algumas sociedades também parecem sofrer dela. Muitas vezes, como sociedade, escolhemos a que nos oferece uma satisfação imediata e hipotecamos no mesmo gesto nosso destino comum e o das gerações seguintes. Uma ação fundamental por meio da qual evitamos essa miopia social é a educação. Nela sabemos observar a partir do imediato e projetamos para o futuro. A educação integra, dá oportunidade, gera sociedades harmônicas com igualdade. Talvez, então, a medida do bom funcionamento do lobo frontal de nossa sociedade esteja justamente aí: em tomar as decisões coletivas que se adaptem às situações dadas e que vão muito além de um bocadinho de tempo, que saibam ver com nitidez o futuro.
Texto extraído do livro: Usar o cérebro – editora planeta