A Constituição brasileira estabelece que a atividade física é um direito de todos e que, por essa razão, os governantes estão obrigados a disseminá-la pela sociedade. Isso vale para atividades tão diferentes quanto o futebol, a capoeira, a dança, a hidroginástica, o tai chi chuan e a caminhada.
Na prática, porém, o direito à atividade física, previsto no artigo 217, é pouco conhecido dos brasileiros, nunca foi adequadamente regulamentado e quase sempre foi deixado em segundo plano pelos governantes.
É uma situação oposta à que ocorre com outros direitos constitucionais, como a saúde, a educação, a cultura e a segurança. Há anos, em cada um desses setores, o governo federal, os estados e os municípios repartem entre si as obrigações, desenham políticas e reservam verbas para executá-las.
O descaso crônico com o incentivo à atividade física começou a mudar no mês passado, quando a Lei Geral do Esporte (Lei 14.597), após ser aprovada pela Câmara e pelo Senado, foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A nova lei diz que o poder público tem que apresentar uma gama de atividades físicas às crianças e aos adolescentes, tanto nos colégios quanto em ONGs, clubes públicos, centros comunitários e movimentos sociais.
Aqueles jovens que se mostrarem talentosos em alguma modalidade esportiva serão encaminhados, se assim quiserem, para centros de formação de atletas.
Os que não tiverem a vocação serão incentivados a tomar gosto pelos exercícios físicos e mantê-los como hábito na vida adulta e na velhice, fazendo uso da infraestrutura esportiva e das atividades garantidas pelo poder público.
Especialistas na área esportiva avisam, contudo, que a Lei Geral do Esporte dificilmente conseguirá cumprir a missão de democratizar e universalizar o acesso à atividade física se não existirem verbas federais obrigatórias para a área.
O alerta decorre do fato de Lula ter vetado diversos artigos do projeto aprovado pelo Poder Legislativo, particularmente o que obrigava o governo a criar o Fundo Nacional do Esporte — o que surpreendeu e contrariou as entidades que defendem o esporte como direito social.
Esse fundo se encarregaria de receber os recursos federais e repassá-los aos estados e às prefeituras, que aplicariam o dinheiro na construção de instalações esportivas, na compra de material, na capacitação de instrutores, na organização de eventos etc.
O advogado Wladimyr Camargos, especialista em direito esportivo e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), avalia:
— Os vetos desfiguraram a nova lei. Sem o Fundo Nacional do Esporte, ela fica sem espinha dorsal e não se sustenta de pé.
O educador físico Fernando Mezzadri, coordenador do Instituto de Pesquisa Inteligência Esportiva e pró-reitor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), concorda:
— A criação do Fundo Nacional do Esporte é uma necessidade urgente. Nos últimos anos, o setor esportivo recebeu em média 0,01% do orçamento federal e 0,02% dos orçamentos estaduais. É impossível fazer uma política esportiva satisfatória com valores irrisórios.
Seguindo o mesmo raciocínio, o educador físico e professor Fernando Mascarenhas, da Universidade de Brasília (UnB), afirma:
— Se o Fundo Nacional do Esporte não for criado, o Estado vai continuar privilegiando o futebol profissional e o sistema olímpico, por meio de renúncias fiscais e da arrecadação das loterias, e deixando a atividade física da população subfinanciada. Isso atenta contra a Constituição, que diz que os recursos públicos devem priorizar o esporte educacional e recreativo, não o profissional.
O presidente da República vetou a criação do Fundo Nacional do Esporte sob o argumento de que a Lei Geral do Esporte não estimava qual seria o valor da despesa extra para os cofres públicos nem indicava a fonte dos recursos.
O veto presidencial, contudo, ainda pode ser derrubado pelo Congresso Nacional, que tem a prerrogativa de restabelecer os artigos originais. Os deputados e senadores têm até o próximo mês para se reunir e analisar os trechos suprimidos.
O governo afirma que quer o Fundo Nacional do Esporte e anunciou que está trabalhando para apresentar ao Congresso Nacional em até 90 dias um projeto que trate especificamente de sua criação, incluindo o detalhamento financeiro necessário.
De acordo com os especialistas, o Fundo Nacional do Esporte teria o poder de induzir os estados e os municípios não só a oferecer práticas esportivas à população, mas também serem criteriosos e rigorosos na elaboração e execução das políticas.
Isso ocorreria porque, para solicitar as verbas, os governadores e prefeitos precisariam antes cumprir diversas exigências, como criar um Fundo Estadual ou Municipal do Esporte (onde o dinheiro seria depositado, tornando os gastos transparentes), instituir um Conselho Estadual ou Municipal do Esporte (com a participação de representantes da sociedade civil) e elaborar um Plano Estadual ou Municipal do Esporte (com diretrizes claras para as políticas públicas).
Ao transferir recursos para a construção de quadras esportivas, por exemplo, o governo federal poderia exigir dos secretários locais de Esporte que programem atividades permanentes nesses locais. Isso ajudaria a acabar com os casos em que quadras recém-inauguradas logo são abandonadas e se deterioram por falta de instrutores e material básico.
Atualmente, o fundo, o conselho e o plano são facultativos. De acordo com um levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa Inteligência Esportiva, que é ligado à UFPR, 61,5% das cidades brasileiras não contam com Conselho Municipal de Esporte e 67% não elaboraram Plano Municipal de Esporte.
O exercício garante bem-estar aos indivíduos e economia aos cofres públicos. Além de ajudar na sociabilidade e na saúde mental, previne doenças crônicas (como obesidade, hipertensão e diabetes), hospitalizações, afastamentos do trabalho, aposentadorias por invalidez e mortes precoces. Isso significa menos dispêndios para o Sistema Único de Saúde (SUS) e a Previdência Social.
No caso dos idosos, grupo que se torna cada vez mais numeroso no Brasil, a atividade física regular ajuda na mobilidade e na autonomia.
Além disso, estudos apontam que o esporte tem o poder de prevenir a delinquência juvenil e o uso de drogas.
Apesar de tantos benefícios, pesquisas apontam que a atividade física no Brasil é praticamente um luxo e está distante da universalização. Segundo o Censo Escolar de 2022, 58% das escolas públicas do ensino fundamental não têm quadra de esportes.
A população nacional é sedentária. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que 65% dos brasileiros adultos não fizeram nenhum tipo de atividade física nos 12 meses anteriores. Quanto mais pobre, menos escolarizada e mais velha é a pessoa, mais os exercícios estão fora de sua vida.
Entre os motivos apontados pelos entrevistados para não praticarem atividade física, estão a falta de interesse, as dificuldades financeiras e a inexistência de instalações esportivas perto de casa.
— Diante da falta de ação do Estado, a parte da população que deseja ter acesso à atividade física precisa pagar um clube, uma academia, um personal trainer. Por isso, quem mais se exercita hoje no Brasil são homens brancos que trabalham como profissionais liberais. Quem menos se exercita são mulheres negras que se dedicam ao trabalho doméstico. Existe injustiça na distribuição de um direito que é de todos — diz o professor Fernando Mascarenhas, da UnB.
Ele avalia que a indústria esportiva e os meios de comunicação transmitem aos brasileiros uma imagem equivocada do esporte:
— O esporte é apresentado apenas como espetáculo e mercadoria. As pessoas são estimuladas a assinar o pay per view do campeonato de futebol, comprar a camiseta do time da primeira divisão, desejar o tênis esportivo da marca badalada. Esse é o modelo que gera lucro. Dentro da mesma lógica, o arquétipo do esportista é aquele atleta que participa do espetáculo, aquele herói que sente dor, se sacrifica, se supera, bate recordes. Os brasileiros comuns, então, entendem que a prática do esporte não é para eles. Por isso, em vez de aderirem à atividade física, consomem o esporte de forma passiva.
O professor Fernando Mezzadri, da UFPR, resume:
— Lamento dizer que, ao contrário do que se costuma afirmar com tanto orgulho, o Brasil não é, nem de longe, o país do esporte. Para que isso mude, não podemos ficar restritos à construção de campos de futebol para os homens e de parquinhos para as mulheres e suas crianças. Precisamos criar na sociedade a cultura do esporte, a cidadania esportiva, a consciência de que a atividade física precisa estar presente no dia a dia de cada um.
De acordo com ele, um artigo importante da nova Lei Geral do Esporte é o que prevê a criação do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Esportivos, que tem a incumbência de constantemente fazer um raio X da situação do esporte no país. Ele explica:
— Para agir corretamente, é preciso ter as informações atualizadas e um diagnóstico preciso e confiável do problema. Não se pode fazer política pública às cegas. É por essa razão que o Ministério da Saúde tem o DataSUS, o Ministério do Planejamento tem o Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], o Ministério da Educação tem o Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira]. O Ministério do Esporte precisa dispor de uma ferramenta semelhante.
De fato, as informações por vezes estão desatualizadas. Aquele levantamento do IBGE que mostrou que 65% dos brasileiros adultos são sedentários, por exemplo, é o mais recente disponível e foi feito em 2015.
Mezzadri entende que a criação do Fundo Nacional do Esporte seria uma forma de institucionalizar as políticas de universalização da atividade física:
— Elas deixariam de ser políticas de governo, que são transitórias e frágeis, e passariam a ser políticas de Estado, que são permanentes e sólidas. Isso significa que não ficariam mais reféns da orientação política do governo da vez, que a seu bel-prazer pode cortar verbas e acabar com projetos em andamento. O SUS, por exemplo, só continua existindo porque é uma política de Estado, não de governo.
A Lei Geral do Esporte se originou no Senado. Em 2015, a Casa criou uma comissão de juristas para propor a modernização e a unificação das leis esportivas. A iniciativa se deu num ambiente favorável — o Brasil vivia a euforia de sediar a Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016.
A comissão ouviu especialistas nas diversas ramificações do esporte. A sociedade também participou dos debates, de forma on-line, por meio do Portal e-Cidadania.
O anteprojeto ficou pronto em 2016 e buscou abarcar todos os aspectos do esporte, incluindo os direitos trabalhistas dos atletas, os crimes cometidos por torcedores nos estádios, os repasses públicos para o esporte profissional e as regras para a gestão de organizações esportivas privadas, além da execução do direito social à atividade física.
Na Câmara, o projeto da Lei Geral do Esporte foi relatado pelo deputado Felipe Carreras (PSB-PE), que foi secretário estadual de Esportes em Pernambuco. No Senado, pela senadora e ex-jogadora de vôlei Leila Barros (PDT-DF).
— Mesmo com os vetos, a Lei Geral do Esporte é um avanço — afirma a senadora. — É legítimo que continuemos o debate. Vou trabalhar com o Ministério do Esporte para garantir uma legislação esportiva justa, igualitária e eficiente.
O professor Wladimyr Camargos, da UFG, foi um dos integrantes da comissão de juristas do Senado e o responsável por redigir o anteprojeto. Ele lembra que uma das previsões que estavam contidas na proposta original, mas foram retiradas durante a tramitação no Parlamento, foi a que estabelecia as fontes dos recursos do Fundo Nacional do Esporte:
— O anteprojeto previu que a incidência extra de 0,5% na tributação de alimentos ultraprocessados, bebidas industrializadas e cigarros e que esse valor seria destinado integralmente ao Fundo Nacional do Esporte. Como são produtos que provocam danos à saúde, é justo que seus fabricantes de alguma maneira ajudem a financiar a atividade física. Essa sobretaxa poderia ser novamente considerada agora.
Segundo o professor, o atual momento é propício para discutir as fontes que vão alimentar o esperado Fundo Nacional do Esporte, pois a reforma tributária está na pauta do Congresso Nacional e é uma das prioridades do governo para os próximos meses.
Camargos sugere que a regulamentação das apostas esportivas on-line, prometida pelo governo como parte da reforma tributária, preveja a destinação de parte do tributo arrecadado para o Fundo Nacional do Esporte.
Procurado, o Ministério do Esporte afirmou, por meio de nota, que a proposta que pretende enviar em até 90 dias ao Congresso Nacional cobrindo os pontos vetados “por razão jurídica” pelo presidente Lula, incluindo o Fundo Nacional do Esporte, deverá “preservar muito do que foi discutido” pelos parlamentares.
“A criação do fundo sempre foi nosso interesse. O debate [na Câmara e no Senado] não deverá se estender, já que o texto que foi vetado na lei já passou pela avaliação das duas Casas e sua estrutura principal deverá ser preservada. Também é importante destacar que o modelo de fundos para a estruturação de políticas públicas já está muito consolidado na educação e na saúde, por exemplo. Não partimos do zero. Há muito acúmulo de experiências, modelos e conhecimento”, explicou.
Segundo o ministério, a nova Lei Geral do Esporte ajudará a promover o desenvolvimento social, a inclusão, a equidade de gênero e a cultura de paz no esporte.
Fonte: Agência Senado