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Aprender com o cérebro

As primeiras áreas cerebrais a amadurecer são as mais básicas, relacionadas com a informação visual ou com o controle motor dos movimentos. Confira o artigo de hoje da neuropsicóloga Celina Vallim.

Por: Dra. Celina Vallim
17/03/2022

O curso dinâmico do desenvolvimento do cérebro é um dos aspectos mais fascinantes da condição humana, já que conjuga a genética e a interação com o entorno. O cérebro de um recém-nascido tem só um quarto do tamanho do de um adulto e, durante toda a infância, vai passar por um crescimento intenso e maciço de neurônios. Mas esse fenômeno eminentemente biológico estará condicionado pela experiência, já que será ela que vai orientar as conexões neuronais , quais serão preservadas e quais serão eliminadas.

As primeiras áreas cerebrais a amadurecer são as mais básicas, relacionadas com a informação visual ou com o controle motor dos movimentos. Mais tarde se desenvolvem outras, como a linguagem e a orientação espacial. As últimas áreas que amadurecem, entre a segunda e a terceira décadas de vida, são as que estão localizadas na zona frontal. Esses dados nos permitem compreender que no cérebro da criança e também no do adolescente, as áreas envolvidas na inibição do impulso, na tomada de decisões, no planejamento e na flexibilidade cognitiva ou intelectual, ainda estão em processo de amadurecimento.

Todas essas evidências que surgem das pesquisas neurocientíficas sobre como o cérebro se desenvolve e aprende têm o potencial de gerar um grande impacto na prática educativa. A compreensão dos fenômenos da biologia do cérebro em desenvolvimento permite abordar questões-chave para a aprendizagem, tais como a memória, a atenção, a alfabetização, a compreensão de textos, o cálculo, o sono, a noção de inteligência, a interação social, como é o impacto emocional e, inclusive, que papel desempenha a motivação. Também existem dados comprováveis de como o cérebro processa a informação nova ao longo da vida, sobre o papel da imitação, do tempo de descanso cerebral necessário para o assentamento do conhecimento, da relevância da correção de erros, da ajuda da tarefa dirigida e da importância do papel ativo e fundamental do docente. Diversos achados neurocientíficos demonstraram que a interação com outros humanos é central para a aprendizagem das crianças e adolescentes. E no cruzamento de diferentes disciplinas que se conseguem os maiores conhecimentos e as práticas mais eficazes.

É importante lembrar que os neurônios se desenvolvem a partir de um padrão genérico dinâmico moldado pelas exigências e estímulos do entorno. Imaginemos, por exemplo, um violinista. Ele move os dedos da mão esquerda de maneira intensa e precisa para tocar com eficácia seu instrumento. A área do cérebro encarregada do controle motor elabora, para isso, maior quantidade de conexões neuronais. Essas conexões permitem que o violinista aprimore sua destreza com o violino, e esses estímulos, por sua vez, geram novas conexões. Isso quer dizer que estamos diante de um sistema que se retroalimenta e produz, nesse caso, um círculo virtuoso. E, como contrapartida, diante da carência de estímulos, o que se produz também é um círculo vicioso. Se um rapaz não recebe suficiente estimulação intelectual, as vias ou circuitos neuronais que têm que ser eliminados não o são, e as vias ou circuitos neuronais que têm que permanecer não ficam.

A relação entre as neurociências e a educação pode dar lugar a uma transformação das estratégias educacionais que permitirá planejar novas políticas educacionais e programas para a otimização das aprendizagens. Assim, muitas perguntas sobre a política educacional podem ser novamente abordadas. Qual a melhor idade para se iniciar a educação formal? Existe uma idade crítica a partir da qual se torna mais complexa a alfabetização? Por que algumas crianças aprendem com mais facilidade que outras? As neurociências podem contribuir para a busca dessas respostas, e os educadores não devem ter receio de suas contribuições, já que muitas delas seguramente ampliam e inclusive dão respaldo a seus saberes e práticas cotidianas de ensino. De igual modo, os neurocientistas devem trabalhar em estreita colaboração com os docentes, já que são eles que conhecem melhor a realidade da aula.

Mas qualquer estimulação ou programa educativo, inclusive os mais inovadores e sofisticados, demandam uma condição ainda mais primária para o eficaz desenvolvimento dos cérebros que estão se formando. Ambiciosas propostas educacionais pessoais, em classe ou comunitárias, falham não por questões qualitativas dessas experiências, mas sim pela má alimentação do educando. A carência nutricional produz um impacto tremendamente negativo no desenvolvimento neuronal das crianças e adolescentes. A desnutrição e a má nutrição estão associadas a alterações na atividade de neurotransmissores, as substâncias químicas por meio das quais um neurônio se comunica com outro. O efeito nocivo se agrava quando a insuficiência se dá principalmente por uma ingestão muito pobre em vários nutrientes, como proteínas, zinco, ácidos graxos essenciais e ferro. O exemplo pode parecer um exagero, mas vale a pena como demonstração do que dissemos: em estudos médicos de crianças que morreram por desnutrição, encontrou-se um número de neurônios consideravelmente diminuído.

Martha Farah, reconhecida neurocientista da Universidade da Pensilvânia, estudou o impacto dessas carências no cérebro em desenvolvimento. Seus estudos puderam chegar a conclusões sobre os efeitos negativos causados por uma nutrição pobre, a exposição a toxinas do meio ambiente e cuidados pré-natais inadequados. Mas um dos elementos mais importantes de seus estudos teve a ver com o grau de reversibilidade dessas condições. Conforme já dissemos, o cérebro é plástico e tem capacidade de mudar, razão pela qual se deve compreender que é premente a necessidade dos estímulos adequados, alimentação e afeto e, mesmo que tenha passado do tempo, a intervenção será favorável.

Uma pesquisa esclarecedora sobre essa capacidade de mudança do cérebro foi realizada por alguns cientistas da Universidade de Londres a partir de 1989, quando se estudou o caso de meninos órfãos que haviam estado em orfanatos da Romênia de Ceaucescu. Por volta de fins da década de 1980, calcula-se que viviam em orfanatos entre 65 mil e 100 mil crianças. Elas passavam até vinte horas por dia sem atenção. A partir da queda do ditador, foram acionadas várias campanhas para que famílias do mundo todo adotassem essas crianças. No momento em que foram adotadas, elas apresentavam severos déficits de aprendizagem e sérias alterações de comportamento. Nas famílias que lhes proporcionaram uma alimentação adequada, um lar confortável, afeto e uma boa educação, muitas crianças mostraram considerável melhora. Esses resultados permitiram comprovar que sempre, em maior ou menor grau, o estímulo positivo favorece a condição. O cérebro é um órgão suficientemente hábil e flexível para se adaptar a um destino mais conveniente, ou seja, mais feliz.

A família, as instituições, a pequena comunidade e a sociedade organizada em cada país são os responsáveis pelo desenvolvimento das crianças e adolescentes. Que sentido têm essas pequenas comunidades ou uma sociedade que se organiza em imensas estruturas burocráticas se esse destino de realização plena e felicidade não for possível? Que outro investimento público para toda nação pode ser mais prioritário que alimentar, curar e educar um cérebro que está em desenvolvimento?

Essas crianças e adolescentes devem ser os verdadeiros privilegiados porque assim o exige a ordem da natureza e da cultura e porque serão eles que crescerão e traçarão com mão própria seu novo destino, o de sua comunidade, enfim, e de todos nós.

 

Texto extraído do livro: Usar o cérebro – editora planeta

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