Há alguns anos, quando, alguns amigos, estavam reunidos no Café Tortoni de Buenos Aires, perguntaram como seria que os garçons se lembravam de tantos pedidos sem os anotar e como faziam para servir a cada pessoa o pedido correto. Partindo da base de que os garçons são experientes memorizadores, uma equipe formada por pesquisadores do Instituto de Neurologia Cognitiva (INECO) e do Instituto de Neurociências da Fundação Favaloro planejou uma experiência que nos permitiria entender qual a estratégia dos garçons argentinos para lembrar entre tantas bebidas e comidas o que servir a cada pessoa. O lugar mais apropriado para realizar a experiência foi o contexto natural em que se desempenhavam os garçons ao utilizar sua memória de forma habitual: a cafeteria ou o bar.
Durante várias semanas, visitaram, num grupo de oito pessoas, clássicos bares portenhos (Tortoni, London City, Británico, La Ideal, El Molino e outros). Depois de acomodados, faziam os pedidos e, num momento em que o garçom não os viam, trocavam de lugar. Quando ele voltava com o que fora pedido, verificavam se tinha havido algum erro ao servir cada um. O experimento consistiu em determinar se a estratégia do garçom era servir só pela lembrança do rosto de cada um ou associar o lugar em que cada pessoa estava sentada com o que fora pedido por ela. Na primeira hipótese, os garçons não teriam problema para servir o pedido correto a cada cliente, sem levar em conta o lugar onde o pedido fora feito. Se, ao contrário, a estratégia dos garçons fosse associar o lugar em que o cliente estava sentado com o pedido, então os garçons serviriam os pratos na localização correta, mas à pessoa errada.
Os resultados foram quase sempre uma mistura de ambas as situações: alguns garçons voltavam e deixavam os pedidos no lugar correto da mesa (mas não à pessoa certa) e outros garçons os entregavam às pessoas certas, apesar de elas estarem em outro lugar da mesa.
Esses achados indicam que o segredo da memória dos garçons estava em se lembrar da associação do rosto com o lugar. Se uma das variáveis muda, os garçons falham.
Depois de vários anos de treinamento diário, os garçons aprendem a incorporar esses esquemas de memória e preenchê-los com os dados de cada mesa toda vez que outros clientes fazem seus pedidos. Ao mudar de lugar, o esquema se quebra e essa memória espacial dos garçons portenhos deixa de funcionar. Em homenagem à clássica cafeteria de Buenos Aires, onde foi despertada a curiosidade e onde realizaram parte importante do experimento, chamaram a pesquisa sobre a memória seletiva de “efeito Tortoni”.
Outra das reflexões interessantes dessa experiência não tem relação direta com o resultado, mas sim com o método. Em geral não podemos testar como funciona o cérebro no mundo real, mas fazemos testes no consultório e no laboratório, mas dessa vez fizeram um projeto que permitiu estudar a memória desses especialistas na situação concreta, o bar. Quase sempre os psicólogos de campo (quase antropólogos) só observam e tentam inferir como a mente funciona analisando essas observações. Foram um passo adiante e testaram as hipóteses controlando a situação e comparando duas cenas: uma em que eles comportaram como bons clientes, clássicos, e pediram as bebidas e comidas, e o garçom as trouxe e distribuiu corretamente o que cada um pediu, e a outra em que pediram e mudaram de lugar, e o garçom voltou e fez o melhor que pôde. Esse estudo acabou sendo original por isso, porque muda a forma de se fazer psicologia e ciências cognitivas de duas maneiras: uma por terem saído do laboratório para testar gente em seu habitat natural, e outra por terem controlado as coisas que queriam mudar para provar a hipótese central.
Texto extraído do livro: Usar o cérebro – editora planeta