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O Efeito Tortoni

No artigo de hoje, a neuropsicóloga, Celina Vallim, fala sobre um estudo que surgiu há alguns anos, quando, alguns amigos, estavam reunidos no Café Tortoni de Buenos Aires, perguntaram como seria que os garçons se lembravam de tantos pedidos sem os anotar e como faziam para servir a cada pessoa o pedido correto. Confira.

Por: Dra. Celina Vallim
26/08/2021

Há alguns anos, quando, alguns amigos, estavam reunidos no Café Tortoni de Buenos Aires, perguntaram como seria que os garçons se lembravam de tantos pedidos sem os anotar e como faziam para servir a cada pessoa o pedido correto. Partindo da base de que os garçons são experientes memorizadores, uma equipe formada por pesquisadores do Instituto de Neurologia Cognitiva (INECO) e do Instituto de Neurociências da Fundação Favaloro planejou uma experiência que nos permitiria entender qual a estratégia dos garçons argentinos para lembrar entre tantas bebidas e comidas o que servir a cada pessoa. O lugar mais apropriado para realizar a experiência foi o contexto natural em que se desempenhavam os garçons ao utilizar sua memória de forma habitual: a cafeteria ou o bar.

Durante várias semanas, visitaram, num grupo de oito pessoas, clássicos bares portenhos (Tortoni, London City, Británico, La Ideal, El Molino e outros). Depois de acomodados, faziam os pedidos e, num momento em que o garçom não os viam, trocavam de lugar. Quando ele voltava com o que fora pedido, verificavam se tinha havido algum erro ao servir cada um. O experimento consistiu em determinar se a estratégia do garçom era servir só pela lembrança do rosto de cada um ou associar o lugar em que cada pessoa estava sentada com o que fora pedido por ela. Na primeira hipótese, os garçons não teriam problema para servir o pedido correto a cada cliente, sem levar em conta o lugar onde o pedido fora feito. Se, ao contrário, a estratégia dos garçons fosse associar o lugar em que o cliente estava sentado com o pedido, então os garçons serviriam os pratos na localização correta, mas à pessoa errada.

Os resultados foram quase sempre uma mistura de ambas as situações: alguns garçons voltavam e deixavam os pedidos no lugar correto da mesa (mas não à pessoa certa) e outros garçons os entregavam às pessoas certas, apesar de elas estarem em outro lugar da mesa.

Esses achados indicam que o segredo da memória dos garçons estava em se lembrar da associação do rosto com o lugar. Se uma das variáveis muda, os garçons falham.

Depois de vários anos de treinamento diário, os garçons aprendem a incorporar esses esquemas de memória e preenchê-los com os dados de cada mesa toda vez que outros clientes fazem seus pedidos. Ao mudar de lugar, o esquema se quebra e essa memória espacial dos garçons portenhos deixa de funcionar. Em homenagem à clássica cafeteria de Buenos Aires, onde foi despertada a curiosidade e onde realizaram parte importante do experimento, chamaram a pesquisa sobre a memória seletiva de “efeito Tortoni”.

Outra das reflexões interessantes dessa experiência não tem relação direta com o resultado, mas sim com o método. Em geral não podemos testar como funciona o cérebro no mundo real, mas fazemos testes no consultório e no laboratório, mas dessa vez fizeram um projeto que permitiu estudar a memória desses especialistas na situação concreta, o bar. Quase sempre os psicólogos de campo (quase antropólogos) só observam e tentam inferir como a mente funciona analisando essas observações. Foram um passo adiante e testaram as hipóteses controlando a situação e comparando duas cenas: uma em que eles  comportaram como bons clientes, clássicos, e pediram as bebidas e comidas, e o garçom as trouxe e distribuiu corretamente o que cada um pediu, e a outra em que pediram e mudaram de lugar, e o garçom voltou e fez o melhor que pôde. Esse estudo acabou sendo original por isso, porque muda a forma de se fazer psicologia e ciências cognitivas de duas maneiras: uma por terem saído do laboratório para testar gente em seu habitat natural, e outra por terem controlado as coisas que queriam mudar para provar a hipótese central.

 

Texto extraído do livro: Usar o cérebro – editora planeta

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