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O poder do esquecimento

A neuropsicóloga, Celina Vallim, explica no artigo de hoje que para os seres humanos, poder esquecer é tão importante quanto poder se lembrar. Confira.

Por: Dra. Celina Vallim
02/09/2021

O esquecimento é talvez o aspecto mais marcante da memória. Podemos contar toda a nossa infância e adolescência (mesmo sendo essas etapas aquelas em que vivemos aspectos críticos de nossa vida) em não mais de algumas horas. Embora durante esse tempo tenhamos aprendido a falar, a andar, a experimentar o calor de nossos pais, o amor, a tristeza e a amizade, esquecemos quase tudo. No célebre conto de Borges “Funes, o memorioso”, o que se põe em questão não é tanto o que o pobre Ireneo era capaz de recordar, mas sim, ao contrário, o que era incapaz de esquecer. Ou melhor, sua impossibilidade de transformar as vastas lembranças em pensamento (“Pensar”, diz o narrador, “é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair”). Ireneo Funes não podia negligenciar o irrelevante, nem estabelecer associações, nem construir ideias gerais das coisas. Para os seres humanos, poder esquecer é tão importante quanto poder se lembrar. Se nosso sistema nervoso não tivesse desenvolvido mecanismos para evitar formar certas memórias irrelevantes e para tentar esquecer alguma coisa, seria difícil não sucumbir a um estilo de vida como o de Funes.

Alguns esquecimentos são intencionais, estabelecidos por sistemas inibitórios no cérebro para suprimir lembranças. Em um estudo da Universidade Stanford, observou-se através de neuroimagens que, quando se pedia aos participantes que ativamente suprimissem certas recordações, havia uma grande ativação do córtex pré-frontal (a parte mais dianteira de nosso cérebro) e uma menor ativação do hipocampo. Esses mecanismos inibitórios compartilham estruturas com os processos envolvidos na inibição dos movimentos: por exemplo, se vemos que um vaso está caindo de uma janela, nossa tendência é tentar pegá-lo, mas podemos inibir esse movimento se nos dermos conta de que se trata de um cacto e que ele pode nos espetar. “Outros esquecimentos são produzidos por nosso cérebro por conta própria sem que lhe peçamos nada: o cérebro se encarrega de tornar inacessível a evocação de certas lembranças”, diz o pesquisador argentino Iván Izquierdo, autor de A arte de esquecer.

Isso não ocorre, como já dissemos, com memórias associadas a emoções intensas. Vários experimentos demostraram que as lembranças associadas a uma carga emocional intensa conseguem se consolidar melhor, pois essas emoções disparam em nosso organismo cascatas químicas e fisiológicas que favorecem a formação de novas memórias. Isso permitiu o desenvolvimento de linhas originais de pesquisa destinadas ao tratamento de pacientes com estresse pós-traumático.

No conto de Borges, Ireneo Funes confessa ao narrador: “Minha memória, senhor, é como um depósito de lixo“. No sábio proveito da lembrança desse passado no presente, o que Funes, o memorioso, não pôde conseguir, está uma das chaves do que nós seres humanos faremos do futuro.

 

Texto extraído do livro: Usar o cérebro – editora planeta

 

 

 

 

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