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O sentido do amor

No artigo de hoje, a neuropsicóloga Celina Vallim, explica que o amor, do ponto de vista neurocientífico, é uma experiência que envolve maciçamente os sistemas cerebrais de recompensa. Confira.

Por: Dra. Celina Vallim
09/12/2021

O amor é um dos tópicos mais elaborados nas obras de arte. Grandes filmes, romances e poemas perpassam a história de grandes amores. Da mesma maneira, o amor é um elemento fundamental na tradição mítica e na história social. E naturalmente constitui também um interessante desafio para a neurobiologia. Com base em pesquisa na área da neurociência social, podemos tentar definir o amor como um estado mental subjetivo que consiste numa combinação de emoções, de motivação (essencial para atingir metas e objetivos) e de funções cognitivas complexas. Mais que um sentimento que vem de nosso coração, hoje sabemos que o amor é um processo sofisticado. Soa romântico dizer que “se ama com o coração”, mas isso não é correto. Como se sabe, é o cérebro que dita toda a nossa atividade mental.

Ao lidar com temas como esse, é importante ter presente que a ciência reformula conceitos estabelecidos, criando outros, novos, que podem estar relacionados com os anteriores, mas não são os mesmos. Isso quer dizer que, nas neurociências, quando falamos de amor não estamos querendo revelar um sentido até hoje oculto do que sentiam Romeu Julieta. O que estamos fazendo é abordar um tema da neurobiologia que chamamos de “amor” e sempre relacionando-o com outras tradições. Antes da química moderna, pensava-se que os elementos básicos eram terra, água, fogo e ar. A tabela periódica moderna define os elementos de maneira diferente, que, agora sabemos, é adequada. O mesmo dá com conceitos como “memória”, “atenção”, “inteligência” e, justamente, “amor”. No uso corrente, esses termos têm muitos significados, razão pela qual é difícil que a ciência os possa medir com o rigor necessário. O que a ciência pode fazer, baseada em dados e teoria, é substituir esses conceitos por outros, definidos com precisão, e que só assim podem ser medidos.

O amor, do ponto de vista neurocientífico, é uma experiência que envolve maciçamente os sistemas cerebrais de recompensa. Esse sentimento está intimamente relacionado com a perspectiva da espécie e, portanto, tem uma função biológica de crucial importância. Em anos recentes, alguns grupos de pesquisa tentaram estudar os correlatos neurais do amor em humanos. Embora a nova tecnologia permita a obtenção de imagens muito esclarecedoras do que se passa em nosso cérebro quando nos apaixonamos, devemos ser cuidadosos na interpretação de muitos dos resultados, já que elas só nos fornecem informações sobre a relação entre uma área cerebral e o estado de apaixonamento.

O amor modifica nosso cérebro. Diversos estudos demonstraram que quando as pessoas estão profundamente apaixonadas elas apresentam fortes manifestações somatossensoriais: sentem o amor em seu próprio corpo e na mente, ficam mais motivadas, têm mais capacidade para concentrar a atenção e relatam que estão mais felizes. Estudos de neuroimagens funcionais evidenciaram que amor ativa sistemas de recompensa do cérebro (as mesmas área que são ativadas quando as pessoas sentem outras emoções positivas, quando estão motivadas ou quando podem antecipar uma experiência bastante significativa) e se desativam os circuitos cerebrais responsáveis pelas emoções negativas da avaliação social. Em outras palavras, o córtex frontal, vital para o julgamento, se apaga quando nos apaixonamos e assim consegue que se suspenda qualquer crítica ou dúvida. Por que o cérebro se comporta assim? Talvez por altos fins biológicos e, assim, promover a reprodução: se o julgamento é suspenso, até o casal mais improvável pode se unir e se reproduzir. As neuroimagens demonstraram também que uma área importante na regulação do medo e regiões implicadas nas emoções negativas também se apagam. Isso poderia explicar por que nos sentimos muito felizes – e sem medo de que algo possa dar errado – quando estamos apaixonados. Também se observou que o amor está relacionado com algumas ativações específicas na área do cérebro que intermedeiam funções cognitivas completas, como a cognição social, a imagem corporal e as associações mentais baseadas em experiências passadas.

Há diferentes mensageiros químicos e hormônios do cérebro que têm a ver com o estado de paixão das pessoas. Os estudos de neuro imagens mostram que as áreas ativadas, quando se mostra a alguém fotos do ser amado, pertencem ao sistema de recompensa cerebral que contém uma alta densidade de receptores para a oxitocina e a vasopressina e sugere um grande controle neuro-hormonal dessa experiência (o mesmo se dá com vários animais sociais quando eles se apaixonam). A dopamina é essencial para nossas experiências de prazer e dor, além de estar relacionada com o desejo, o vício e a euforia. O aumento desse mensageiro químico pode provocar sentimentos tão agudos de recompensa, que permite que o amor provoque um dos momentos de maior bem-estar. Um efeito secundário de aumento dos níveis de dopamina é uma redução em outro mensageiro químico, a serotonina, que é crucial em nosso estado de ânimo e no apetite. Os níveis de serotonina podem cair de forma semelhante aos observados em pessoas com transtorno obsessivo compulsivo, o que explica por que o amor pode nos tornar ansiosos. O estado de paixão também libera adrenalina. Esse mensageiro químico está envolvido na aceleração de nosso coração, no suor das palmas das mãos e na boca seca quando vemos a pessoa por quem nos apaixonamos.

Embora o amor maternal e o amor romântico sejam claramente diferentes, ambos ativam áreas similares do cérebro envolvido na emoção, recompensa, motivação e cognição. No entanto, observou-se que uma pequena região no centro do cérebro, no segmento, chamada PHG, é importante e mais ativa no amor maternal, em comparação com o amor romântico. Isso, na verdade, tem sentido porque essa zona está mais especificamente envolvida na supressão da dor endógena que as pessoas experimentam quando têm experiências profundas e dolorosas, por exemplo, no parto. Além disso, essa área é importante no sistema de gratificação.

Os estudos na área de psicologia social demonstraram que o processo de se apaixonar tem a ver com motivações: nossas experiências passadas estão armazenadas em alguma parte de nosso cérebro e, de alguma maneira, dirigem nosso comportamento e nossa tomada de decisões. Estudos recentes em neurociências descobriram que certas áreas cerebrais cognitivas, que cumprem o papel de armazenar esse tipo de associações mentais, baseando-se em nosso passado e nas experiências positivas e negativas que vivemos, são rapidamente ativadas no amor. Também se observou, em estudos eletrofisiológicos, que essas áreas do cérebro se ativam num abrir e fechar de olhos (exatamente em 1/5 de segundo), ao ver um estímulo relacionado com a pessoa amada. Isso significa que a forma pela qual armazenamos nossas experiências passadas em relação às áreas cognitivas de nosso cérebro pode ter uma influência em áreas cerebrais envolvidas nas emoções básicas e no processamento visual.

Os estudos do cérebro e o amor constituem um campo da neurociência social ainda incipiente, e há muitas áreas novas para abordar. Uma delas é o estudo do amor como um processo contínuo, em vez de entendê-lo como uma fase estacionária, pesquisando as modulações das diferenças dentro dos indivíduos e entre eles, ao longo de toda a vida. Esses estudos constituem igualmente um desafio fascinante para se decifrar a implicação do cérebro na experiência amorosa e, sobretudo, para definir o que dizemos quando falamos de amor.

 

Texto extraído do livro: Usar o cérebro – editora planeta

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